segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Insignificantes tesouros de um Império

 

Pintura "Wall painting on black ground: Aedicula with small landscape, from the imperial villa at Boscotrecase" - autor desconhecido

 

Os homens, em geral, parecem empregar a razão para justificar preconceitos, assimilados quase sem saber como, em vez de procurar desarraigá-los.

A mente que forma com resolução seus próprios princípios deve ser forte, porque prevalece uma espécie de covardia intelectual (...)

Mary Wollstonecraft

 

Tu que não tiveste abrigo. Apoio. Comoção. Arminda, que poderia ser uma

grande escritora brasileira, porém seguiu perdida, em  fuga. Não firme, corria insegura,

precária nos arredores do Largo da Carioca. Nomeada escrava, usada. Sua história

escravizada era só um pouco parecida com a de um Cândido Neves, se não fosse tão

desprovida de direitos.

 

É certo que eram ambos ninguéns em diferentes nichos sociais e gostavam de batucada.

 

Era para ela ser mãe como diz o título do conto. Arminda. Nossa origem,

uma matriz esquecida pelas batidas extintas do coração de seu rebento igualmente

aniquilado pelo apagamento dos brancos – desvios narrativos –, pelo medo

de viver no século XIX.

 

Era uma simples pessoa com desejo de ver a abolição acontecer. Tu foste só

mais uma mulher que abortou? Quiçá teu porvir também findou, tamanho o desgosto

que era existir em meio a um espaço onde todo o ódio imperava.

 

Ah, se tivesses tempo para conhecer. Se pudesses ter conhecido. Se tivesses

conhecido a grande romancista negra do Maranhão, mas não. Não pudeste ser Firmina.

 “Não!” Era o que gritavas para não levar o açoite do patrão: “negra fujona”!


Na rua da ajuda, ela não chegou, mas o outro, sim. “Pai contra mãe” e um filho

contra a realidade. Era sua história. Foi uma História consumida pelo Poder.

 

Porém, para além do controle, seria preciso pensar. Os fatos, às vezes, clamam

por verdade. Ou apenas, quem sabe, desejam algo como uma sutil transcriação.

Esperam, ao invés de vingança: Independência.

 


quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Estudo em campo ampliado


[poema em diálogo ecfrástico com o quadro “O semeador” (1888), de Van Gogh]


 As Labaredas de fogo do sol
querem nossos corpos
(pós-destruição)
tingidos de vida em leve toque de laranja
Amarelo azul anil entre outros tons verdejantes

Toque pontilhado em
cada membro
que se esconde à sombra
de uma árvore envergada
segue Desejando todas as chamas

As chamas que desejam 
nossas culturas
em crescimento
Sazonal
para floração
matinal

na paleta de tintas
Sementes coloridas

E clari-enfáticos
Violetas derramados
num fim de tarde em brisa 
querem recompor o breu do presente 
com a retomada do brilho
Incorpóreo
que paira no movimento
Humano

A Tarde cai
trabalhando 
contornos de silêncio
nos olhos recônditos

E quem a vê quer
dar nome 
e chamar 
Amanhã 
de 
⠀⠀⠀⠀uma

⠀⠀⠀⠀⠀Clara 
manhã




segunda-feira, 4 de julho de 2022

                                               Pinterest, autor desconhecido.



 Reinvenção


uma molécula disse SIM a outra

aqui, tantas interrupções, oscilações de sinal

ela disse que não há problema em querer dizer SIM

dias se passaram e eu ainda tento descobrir o verbo exato para

atribuir significado aos acontecimentos passados

as horas se procriam, como um lance de dados

tantos jogos de tabuleiro guardados na memória

nossa, nossa

a melhor maneira de dizer sobre o que passou

é se deixar livre, abrindo delicadamente cada pétala da flor

índigo-violeta, na mente, assim

não há bloqueio entre as pessoas quando vale a pena

se conhecerem e se tocarem

e o toque se dá pelo apelo dos sinais do corpo



Ciclo


eu esqueci justamente o que queria dizer

porque nesse meio-tempo

(vamos combinar)

a vida parou

ainda que o preço de tudo esteja bem alto

você parecia de férias

aguardando as oportunidades

enquanto admirava as viagens 

que os outros faziam

há que se perceber que o clima muda 

às vezes conforme a previsão alerta

mas nesse período enorme de tempo

tantos ciclos viciosos parecemos percorrer

quantas palavras repetidas

aprendemos a ouvir e a responder

para depois darmos 

mãos a outras significações




Estimação


a escrita de repente é bem guardada 

até bem esquecida

negligenciada

tripudiada

açoitada

ridicularizada

variabilidade linguística, legal, 

para que saber dela também?

Nada faz, nada significa para a utilidade monetária

mas quantas palavras escorrem, se injetam,

bem estimadas ou não, adentram as 

mentes humanas e nem sempre

havendo cuidado

quantos erros lacunares movendo as palavras

regurgitam escarros

de incompreensão sobre as telas dos computadores

dos celulares dos tablets das tvs e no papel sujo do jornal

não podemos esquecer - realmente -

que as palavras acabam (in)definindo

o nosso viver 



Apetite


minha infância 

carambola goiaba pão de queijo chocolate

vitamina cuca de banana picolé caseiro

sino dos ventos janela de madeira 

na casa de cima

descendo a escada

de toalha

ou 

levada no colo

com o cobertor

Trigêmeas Bruxonilda 

tem gosto bom 

aquilo que é 

de ninguém

e está em tudo

- -    -

pulsa.




quarta-feira, 20 de abril de 2022

 

Euphonia pectoralis

                                                              Lua verde para nós

                    [uma transcri(a)ção poética, ao som de Chopin – "Nocturne Op. 9 Nº 2"]


Parte 1

Loba
Ela, elo perdido que talvez “Deus ouvirá”
em seu “desejo de amar”
descobrir-se
Que acabou enlaçada pelo
Mar
Marejou flores
No olhar
Um tanto pelo que desejava:
O próprio desejo de amar

Andorinha
A noite amá-la
À noite, há mar
Denso e resplandecente
Constatação por si
Em silêncio
Amar o véu do mar
O despudor do repenique
O som augusto do resquício
É preciso tanta noite para cantar?

Raposa
Não seria simples a fruição de um novo começo
Jogada na soleira dos dias
Em prol de um caminho desconhecido
Sem dias livres
Trancada no alambique das horas
Na labuta de sua vida
O corpo, um artefato sonoro
que deveria limpar os móveis
Para depois poder sonhar: 
Ismália enlouquecida
Passeio sonoro notívago

Coruja
Não era minha nem sua vida
Mas era uma pessoa como outra qualquer
Designada para ser luz
Avistando uma hora única

Hiena
Só que, um dia, pensou em recomeçar e inventou 
Aquilo que não poderia ter
Asas amplas no caleidoscópio do breu
Era preciso voar mais longe

Abelha
Porém ela, qual Ícaro em fetiche
Enviesado
Escolheu somar 
as ondas à neblina dos seus olhos
a chuva sinalizou desajeitadamente a existência do seu corpo
e ela, janela sonora como outra qualquer
carne eclodida
nasceu no ar
sobressaltando a noite
pulando em prol da nova manhã
Se deu um nome:
E voou.


Parte 2


Ismália

[10:30]
A liberdade,
Verde fluorescente
Ciclina multifuncional
Repleta de peptídeos
Saudáveis
Transição de acidez à doçura
Powerful activity
Verde com
Luzes gitanas
Superando
Arranha-céus

[10:40]

As escadarias percorridas
Nas varandas celestes
Te Quiero verde
Tu verde cuerpo sobre
La mar
amar
el desconocido
Y amar el desconocido hasta el anochecer
con tu carne satinada
en neblina
Pulsando
En las caballerías
Salvajes de la mar


[17:59]

A película das manhãs
Aglutinada às noites
Organograma de sensações
Desconfiguradas
E hiperbólicas
Antenadas
Às feições dos dias
Aos lumes de prata

[20:30]
São pássaros elaborados 
Na madeira de mogno
Não são
Jamais são cruzes carregadas
Aves sãs que se descolam
Porque
Se somam ao ar

[00:00]
Novas asas
Asas reais

Te Quiero

Quiero verte

Verdes pastagens
Densas ramagens
Belas
Paragens

(em cada minuto)
Em que está você.




Euphonia pectoralis



                                                                  Lua verde para nós

                           [uma transcri(a)ção literária, ao som de Chopin – "Nocturne Op. 9 Nº 2"]



Hoje, em meio à densidade de acontecimentos que nos tomam a vista, os bichos vieram apresentar o programa. Por que não poderiam? As alternativas estão escassas a cada passo dado por você. Compreende? Eu não gostaria de aceitar como um dado intransponível a sentença de morte da atualidade, bem próxima ao fato que Machado de Assis, em Brás Cubas, outrora nos contara, em suas palavras finais: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Me soaria rude te dizer isso. Mais uma vez. Neste século. Não poderíamos aceitar a sucessão de desamparos e lacunas. Precisamos, enfim, ultrapassar o desfiladeiro desta mórbida realidade. Gostaria de aceitar o convite? Deixemos o sarau iniciar.


Parte 1

Loba

Eu contaria os minutos nesta prosa insólita a passar, entretanto,
na trama eu canto. Falo de Ismália. Ela, elo perdido que talvez “Deus ouvirá”.
Ela, em seu “desejo de amar”, de descobrir-se, que acabou enlaçada pelo
mar. Marejou flores no olhar; um tanto pelo que desejava: o próprio desejo de amar.

Andorinha


A noite amá-la, à noite, há mar. Denso e resplandecente. Constatação por si. Em silêncio. Amar o véu do mar. O despudor do repenique.
O som augusto do resquício. É preciso tanta noite para cantar? — se perguntava.

Raposa

Não seria simples a fruição de um novo começo. Jogada na soleira dos dias.
Em prol de um caminho desconhecido. Sem dias livres. Trancada no alambique das horas. Na labuta de sua vida. O corpo, um artefato sonoro que deveria limpar os móveis. Para depois poder sonhar: Ismália enlouquecida, passeio sonoro notívago.

Coruja

Não era minha nem sua vida. Mas era humana, era uma pessoa como outra qualquer
designada para ser luz. Avistando uma hora única.

Hiena

Só que, um dia, pensou em recomeçar e inventou Aquilo
que não poderia ter. Asas amplas no caleidoscópio do breu. Era preciso voar mais longe.

Abelha

Porém ela, qual Ícaro em fetiche enviesado. Escolheu somar as ondas. À neblina dos seus olhos. A chuva sinalizou. Desajeitadamente. A. Existência do seu corpo. E ela, janela sonora, como outra qualquer. Carne eclodida. Nasceu no ar, sobressaltando a noite, pulando em prol da nova manhã. Se deu um nome:
E voou.


Parte 2


Ismália


[10:30]

A liberdade,
Verde fluorescente
Ciclina multifuncional
Repleta de peptídeos
Saudáveis
Transição de acidez à doçura
Powerful activity
Verde com
Luzes gitanas
Superando
Arranha-céus

[10:40]

As escadarias percorridas
Nas varandas celestes
Te Quiero verde
Tu verde cuerpo sobre
La mar
amar
el desconocido
Y amar el desconocido hasta el anochecer
con tu carne satinada
en neblina
Pulsando
En las caballerías
Salvajes de la mar


[17:59]


A película das manhãs
Aglutinada às noites
Organograma de sensações
Desconfiguradas
E hiperbólicas
Antenadas
Às feições dos dias
Aos lumes de prata


[20:30]

São pássaros elaborados
Na madeira de mogno
Não são
Jamais são cruzes carregadas
Aves sãs que se descolam
Porque
Se somam ao ar



[00:00]

Novas asas
Asas reais


Te Quiero

Quiero verte

Verdes pastagens
Densas ramagens
Belas
Paragens

(em cada minuto)
Em que está você.



sábado, 2 de abril de 2022

Eu-nosso desmedido

 

''Ruínas de Selinunte'' (1950), Gregorio Prieto

 

Eu-nosso desmedido

 

Vivos corpos que soerguem o tempo

futuro com as vestes do passado

Chave larga

Fechadura minúscula

Fina realidade reduzida a pó

 

-vive o luto

-sente o luto

 

Caminham no entorno arruinado

Densa mortalidade compondo

A paisagem

Edifícios tomados pelo mar transviado

 

 

-suporta o luto

-carrega o luto

 

 

Corações despedaçados nos escombros

Espaço tombado da catástrofe

Sílabas pétreas desafiando os dados imaginários

Linhas e dobras viáveis para recomposição

Procuram-se, organizam-se

 

-atravessa o luto

-enfrenta o luto

-supera o luto



terça-feira, 29 de março de 2022

Recomeço portátil ou derivação kintsugi

 

Kintsugi de tigela


Nesta fissura tátil __________
relicário ________ lírico
luzente (r)achado,
podemos nos encontrar

Em meio ao apagamento 
material e às réstias de
pó perdido, ao vento
podemos nos encontrar

Pois temos o objeto incumbido
de redesenhar e (re)carregar
os destroços em nome de
uma peça auriginosa
resultado tátil retalhado
não retaliado
sinônimo de ardor

O frio original se desfaz quando
lá nos encaixamos
nossos corpos colados em lí-
quida aglutinação entre a 
trinca quente e a laca resinosa

Se podemos nos encontrar:
jogo silencioso
acontecimentos reformulados

Incidentes — cacos — cinzas
Intenção — cumbucas — ouro
casualidade dos rejuntes
adição de cor à tigela
e ao seu açúcar empedrado

defeito — mudança — incrustados
recipiente de sim cicatrizado
uma nova entrega da fome
remendada no livre trajeto de
substâncias sutis entrelaçadas

Um novo uso para a vida-cerâmica
e seu coração perolado
Uno craquelado das formas reboladas

Se, pelos dias, fissurada e esquecida,
antes despercebida passava
agora, límbica e estratégica 
inteireza apenas lembrada como
ponto de contato entre o estado da
falta e o da presentificação

Tal como uma tintura nanquim
de finíssima qualidade
todos os prismas em seus contornos
mapeados

Reparo / olho / reparo
as 1001 memórias
reinventadas

Reativação crítica integrada⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
estreita poética
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀na
densa realidade.⠀⠀⠀⠀



Poem-vagão ou Corredor humanitário

“The swan nº 1”, de Hilma Af Klint                                                                                         “The swan nº 1”, de Hilma Af Klint                 


Salto os olhos pelas páginas

e em Cada degrau

da estação tardia

 

Partida, partira, partiu, vamos?

não haverá mais tempo

parto e entrelaço minhas mãos

surrupiada manhã

esquecida por mim

no asfalto das eras

Diabo-lógicas

 

Deixaram o bilhete no chão

“nos beijamos amanhã”

“Até”, digo eu

Extraviada dos anos

desconhecida a matéria

dos sonhos por vir

 

O vagão vaguilongo vagueou

em meio às bombas

Instantes imprecisos, mas

floreando as ideias, pois você torcera

pelo branco das nuvens

ele a viver na paleta do

espírito e, ainda assim, deseja

sua trama em comunhão com a queda


manifestação férrea e sem rédeas,

em si, purpurizando a cadeia de acontecimentos

dispersos__ sem terra

 

Assalto minhas certezas

deixo o interminável tra(n)çar

caminhos

  

Meu irmão sonoro, o vento

balbucia folhagens pelo espaço

toco a memória

do fogo, carambolas em compotas

desligada dos trilhos

 

Apito

em meu corpo

cada mito –

côndria energiza e

ritualiza a etimologia do sol

Lanço-me à dança incerta

à crueza do chamamento longínquo

Captar o

Átrio,

ser em todos os lados

a miríade

Do sim

 

Mitologema

a percorrer

o real da via viva

Vida Espessa, expressa

espessa, Expressa e vibra:

minha peça,

nossa era.


Trilha trincada

 

Insta: @muminalab, “093 — desplegando sueños”.




Tarda muito para haver silêncio
raios de sol_________e eu rastejando
rastreio o rumor reincidente da rua

Eu, sorteio sonoro
sonho__________sibilino
eu nos outros

são sinos que surgem
somando sons

sigo e surjo
_________
rompante raro
em cada lado calado
E rasurado

Rojão da palavra:
ainda é tempo



sábado, 26 de fevereiro de 2022

 








Fundação lú-dica

Luciana Moraes


I.

Disposta a fisgar o sol, deixo

a minha casa de verão, amiga, amigo

rompo as figuras, as marcas e as camadas do papel

com linhas e cores ritmando as horas


II. 

Para absorver o encontro,

nos tocamos,

afogamos

os corpos em mais um dia

neste mar de sig-

nós e sua caçada de pontos preci(o)sos

Não fuja,

ca(n)to o invisível 

flor de intenções

somos conchas afiadas pelo

vento em água

como uma pipa empinada por você

bem-acabada


III.

Escrevemos e vemos como

nos dando as mãos

sobe a onda sobe o voo

nenhuma certeza, é tarde

mesmo assim, 

não desista: o que importa?

sou objeto urgente

nos vemos na próxima esquina

você, maleável 

elos ~ sopros ~ correm ~ em ~ silêncio

me conduz

mas ela diz, afiada,

/sou colorida & 

radica(liza)da no ar 

lá, ele diz /sou

manancial esgarçado, nada

entre rosas e sombras

ela diz /sou engraçada e subversa

à degradação

ele diz /estou em contentamento

ela /estou em contato,

beijando o

abis-

mó.





 Margarida ou Pérola


Luciana Moraes


I.


Bom é ter

olhos que se abrem

para ver um novo dia


e nascer na brecha com

linhas firmes, nessa

manhã costurada pela

flor da memória


II.


Se você caminha assim, na greta,

já se verá em outra fase


o ritmo das cores

e os fardos por trás do aroma


Sim, percorrer a floricultura 

do tempo é exercício pertinaz


III.


Nunca se sabe onde 

começa a bruxa,

onde os rumores do mundo findam


visto que, de repente,

no simples lapso das horas

o corpo anoitece

e, no breu, abotoa

as sementes do sonho 

para vingar:


plantará o brilho

das marés.






Diário Poético - criações






 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A janela semiaberta

 




A janela semiaberta

 

por Luciana Moraes

 

PERSONAGENS

 

 Flávio - dono da casa

Lara - uma desconhecida

Médicos 

Enfermeiros

 

Época: Segunda metade do séc. XX; Lugar do drama: Rio de Janeiro (Recreio, zona Oeste)

_________________________________________________________________________



PRIMEIRO ATO

 

Casa de família de classe média. Quarto grande, chão com tacos de madeira envernizados, armário embutido branco, uma poltrona roxa próxima da porta, uma cama de casal ao centro, uma mesinha de cabeceira bege e um biombo ripado na lateral esquerda. 

É tarde,15hs. Clima fresco

 

CENA I

 

[Lara está sentada na poltrona, o corpo inclinado levemente para a direita. Ela olha fixamente para a janela]

 

FLÁVIO (apreensivo, em pé, próximo da janela)

 

Você disse que conhece a minha casa?

 

LARA (esboça um sorriso)

 

Todos os dias de Janeiro íamos à praia. Era uma alegria.

 

FLÁVIO

 

Você morava aqui com quem? Não sei se entendi bem.

 

LARA 

 

Minhas duas filhas. Luana e Roberta. Meu marido nos deixou. Sumiu no mundo.



FLÁVIO (desconfiado, arrependido por deixá-la entrar mais na casa)

 

Ah, sinto muito. Mas me diga: o que fez você querer pular o muro ainda há pouco? E o passado já passou, não existe mais… 

 

LARA (um pouco desconcertada)

 

Só queria observar aquela roseira lá atrás…dá pra ver melhor aqui do alto, nesse quarto. Posso me aproximar da janela aí?

 

FLÁVIO (incomodado)

 

Você sabe que podia ter se ferido, né? Todos sabemos que os arames farpados são justamente para evitar a entrada de ladrões. Você sabe disso, não? Entende o que eu digo?

 

LARA 

 

Sim, sim. É que eu não tenho mais ninguém. Minhas filhas se casaram. Foram para outro estado. E eu aqui.. lembrando da nossa época feliz. A Roberta adorava aquela roseira, sabe? Ela quem cuidava dela, regava sempre. A Luana, não. Só queria ouvir música, trancada no quarto, o som bem alto e…

 

FLÁVIO (interrompeu a mulher, já cansado de ouvir)

 

Entendi, claro. Então, se você não se importa, daqui a pouco minha esposa chegará com as crianças, e eu gostaria de ter tranquilidade na casa de novo. Tenho também meus trabalhos para cumprir, ok?

 

LARA (confusa)

 

Nossa, ah, desculpe.. certo. Você poderia me dar um copo de água? Acho que minha boca está muito seca, receio que seja…

 

[a mulher tem uma crise convulsiva, cai no chão, se debatendo a todo momento]

 

FLÁVIO (com os olhos arregalados, paralisado)

 

Meus Deus, que dia!! Senhora, se..se.. Vou chamar a ambulância para você receber assistência médica.






SEGUNDO ATO


[Antes do homem pegar o celular, ele escuta uma algazarra em frente a sua casa; tocam o interfone, batem na porta; ele deixa a mulher lá, por um instante, abre a porta, de repente, uma ambulância com uma equipe médica reunida o interpela]


CENA II

 

MÉDICO (gritando, seguindo em direção à porta)

 

Desculpe, senhor, esta mulher não podia estar aí. 

Está se tratando em nossa clínica, aqui no bairro. Com licença, sim?

 

ENFERMEIRO (nervoso)

 

Você não vê?! É um risco para a saúde de todos! Cuidado com ela! 

Vamos pegar ela logo!

 

FLÁVIO (falando enquanto caminha com a equipe)

 

Não tinha como eu saber. Pula o meu muro, entra na minha casa e vai contando histórias…que coisa!

Claro. Mas o que vocês farão com ela?

 

MÉDICO

 

Primeiro, um eletroencefalograma. Com certeza. Ela já não estava bem nessa semana.

Depois, mudar o medicamento, rever a dose.

 

[Quando chegaram no quarto, havia um bilhete amarelo colado na janela semiaberta, nele apenas escrito em caixa alta: A MINHA ROSA DE ESPINHOS MURCHOU. Eles vasculharam todos os cômodos da casa, olharam na varanda: nenhum sinal da mulher. Na rua, vizinhos disseram ter visto uma mulher dançando feliz, girando seu vestido sob o sol, cantando e dançando, ao mesmo tempo, correndo como se fugisse de alguém. Nunca mais Flávio a viu. Ela o deixou enfeitiçado]




 FIM