sábado, 26 de fevereiro de 2022

 








Fundação lú-dica

Luciana Moraes


I.

Disposta a fisgar o sol, deixo

a minha casa de verão, amiga, amigo

rompo as figuras, as marcas e as camadas do papel

com linhas e cores ritmando as horas


II. 

Para absorver o encontro,

nos tocamos,

afogamos

os corpos em mais um dia

neste mar de sig-

nós e sua caçada de pontos preci(o)sos

Não fuja,

ca(n)to o invisível 

flor de intenções

somos conchas afiadas pelo

vento em água

como uma pipa empinada por você

bem-acabada


III.

Escrevemos e vemos como

nos dando as mãos

sobe a onda sobe o voo

nenhuma certeza, é tarde

mesmo assim, 

não desista: o que importa?

sou objeto urgente

nos vemos na próxima esquina

você, maleável 

elos ~ sopros ~ correm ~ em ~ silêncio

me conduz

mas ela diz, afiada,

/sou colorida & 

radica(liza)da no ar 

lá, ele diz /sou

manancial esgarçado, nada

entre rosas e sombras

ela diz /sou engraçada e subversa

à degradação

ele diz /estou em contentamento

ela /estou em contato,

beijando o

abis-

mó.





 Margarida ou Pérola


Luciana Moraes


I.


Bom é ter

olhos que se abrem

para ver um novo dia


e nascer na brecha com

linhas firmes, nessa

manhã costurada pela

flor da memória


II.


Se você caminha assim, na greta,

já se verá em outra fase


o ritmo das cores

e os fardos por trás do aroma


Sim, percorrer a floricultura 

do tempo é exercício pertinaz


III.


Nunca se sabe onde 

começa a bruxa,

onde os rumores do mundo findam


visto que, de repente,

no simples lapso das horas

o corpo anoitece

e, no breu, abotoa

as sementes do sonho 

para vingar:


plantará o brilho

das marés.






Diário Poético - criações






 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A janela semiaberta

 




A janela semiaberta

 

por Luciana Moraes

 

PERSONAGENS

 

 Flávio - dono da casa

Lara - uma desconhecida

Médicos 

Enfermeiros

 

Época: Segunda metade do séc. XX; Lugar do drama: Rio de Janeiro (Recreio, zona Oeste)

_________________________________________________________________________



PRIMEIRO ATO

 

Casa de família de classe média. Quarto grande, chão com tacos de madeira envernizados, armário embutido branco, uma poltrona roxa próxima da porta, uma cama de casal ao centro, uma mesinha de cabeceira bege e um biombo ripado na lateral esquerda. 

É tarde,15hs. Clima fresco

 

CENA I

 

[Lara está sentada na poltrona, o corpo inclinado levemente para a direita. Ela olha fixamente para a janela]

 

FLÁVIO (apreensivo, em pé, próximo da janela)

 

Você disse que conhece a minha casa?

 

LARA (esboça um sorriso)

 

Todos os dias de Janeiro íamos à praia. Era uma alegria.

 

FLÁVIO

 

Você morava aqui com quem? Não sei se entendi bem.

 

LARA 

 

Minhas duas filhas. Luana e Roberta. Meu marido nos deixou. Sumiu no mundo.



FLÁVIO (desconfiado, arrependido por deixá-la entrar mais na casa)

 

Ah, sinto muito. Mas me diga: o que fez você querer pular o muro ainda há pouco? E o passado já passou, não existe mais… 

 

LARA (um pouco desconcertada)

 

Só queria observar aquela roseira lá atrás…dá pra ver melhor aqui do alto, nesse quarto. Posso me aproximar da janela aí?

 

FLÁVIO (incomodado)

 

Você sabe que podia ter se ferido, né? Todos sabemos que os arames farpados são justamente para evitar a entrada de ladrões. Você sabe disso, não? Entende o que eu digo?

 

LARA 

 

Sim, sim. É que eu não tenho mais ninguém. Minhas filhas se casaram. Foram para outro estado. E eu aqui.. lembrando da nossa época feliz. A Roberta adorava aquela roseira, sabe? Ela quem cuidava dela, regava sempre. A Luana, não. Só queria ouvir música, trancada no quarto, o som bem alto e…

 

FLÁVIO (interrompeu a mulher, já cansado de ouvir)

 

Entendi, claro. Então, se você não se importa, daqui a pouco minha esposa chegará com as crianças, e eu gostaria de ter tranquilidade na casa de novo. Tenho também meus trabalhos para cumprir, ok?

 

LARA (confusa)

 

Nossa, ah, desculpe.. certo. Você poderia me dar um copo de água? Acho que minha boca está muito seca, receio que seja…

 

[a mulher tem uma crise convulsiva, cai no chão, se debatendo a todo momento]

 

FLÁVIO (com os olhos arregalados, paralisado)

 

Meus Deus, que dia!! Senhora, se..se.. Vou chamar a ambulância para você receber assistência médica.






SEGUNDO ATO


[Antes do homem pegar o celular, ele escuta uma algazarra em frente a sua casa; tocam o interfone, batem na porta; ele deixa a mulher lá, por um instante, abre a porta, de repente, uma ambulância com uma equipe médica reunida o interpela]


CENA II

 

MÉDICO (gritando, seguindo em direção à porta)

 

Desculpe, senhor, esta mulher não podia estar aí. 

Está se tratando em nossa clínica, aqui no bairro. Com licença, sim?

 

ENFERMEIRO (nervoso)

 

Você não vê?! É um risco para a saúde de todos! Cuidado com ela! 

Vamos pegar ela logo!

 

FLÁVIO (falando enquanto caminha com a equipe)

 

Não tinha como eu saber. Pula o meu muro, entra na minha casa e vai contando histórias…que coisa!

Claro. Mas o que vocês farão com ela?

 

MÉDICO

 

Primeiro, um eletroencefalograma. Com certeza. Ela já não estava bem nessa semana.

Depois, mudar o medicamento, rever a dose.

 

[Quando chegaram no quarto, havia um bilhete amarelo colado na janela semiaberta, nele apenas escrito em caixa alta: A MINHA ROSA DE ESPINHOS MURCHOU. Eles vasculharam todos os cômodos da casa, olharam na varanda: nenhum sinal da mulher. Na rua, vizinhos disseram ter visto uma mulher dançando feliz, girando seu vestido sob o sol, cantando e dançando, ao mesmo tempo, correndo como se fugisse de alguém. Nunca mais Flávio a viu. Ela o deixou enfeitiçado]




 FIM



Imagem do Pinterest - Autor desconhecido

Janela semiaberta

(recriação a partir do conto "A janela", de Lygia Fagundes Telles)

 

Ela está no interior do fruto

no sumo do acontecimento

no suco presente

ela é o próprio desejo se bebendo

e se tragando na cinza das horas

 

Ele gira em indagações

filho do fruto era o filho da árvore

está vivendo o passado

num dia em que

ainda era pai

 

A palavra é parto das roseiras

descalabro do silêncio

dados suspensos no ar

os significados em suas mãos

 

Se houver um passo em falso

deixamos de ver a janela

esquecemos o tempo

e perdemos de vista

o nome dos objetos:

insano instante

 

Se cairmos no chão como uma

Rosa toda delicada

ou uma fruta podre de vida sumarenta

de algum modo

estaremos com eles:


quase entregues,

entre a reflexão  

e

o ocaso.


 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022




Arte de Luciana Moraes



(ÃO)


Esteve
⠀⠀⠀⠀⠀por
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀muito
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ tempo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀aqui

entre o
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀furacão ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e ⠀⠀⠀⠀a
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀calmaria
entre o zumbido
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀da
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mosca
e o espasmo do viver ainda
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀retumbando sentidos constelares
replicando em considerações
finais acerca do intangível
grito

Seu reflexo. Seu borrão.



domingo, 13 de fevereiro de 2022




imagem do Pinterest — autor desconhecido



Autof(r)icções

 -poema alucinado pela necessidade do dia-



Raptos na madrugada
ratos foscos sem son(h)o
rastros no espaço
                             ⠀lapsos

sendo ainda
bio de(sa)gradáveis
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀as folhas e as palavras

ainda, casas que sobem
pelo olhar; trajetos
Nas alturas, telhas e mais telhas
contínuas paredes
e janelas
rasurando o tempo
a perder de vista
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o céu

Retorna à menção do outrora fogo alastrado
Um dia roxo de signos voláteis
e desinformados
arquipélagos sonoros
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀revisitados

E, à deriva, cri(s)e:
trilha em cores secundárias;
uma música para renascer
numa fictícia manhã
de paisagem
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀-ilha

história testemunhada, transparente
transportada pelos pássaros
e que seja verdadeira
e que seja límpida –
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ainda hoje⠀⠀

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

 


                                      imagem do Pinterest (autor desconhecido)

ReNascer

 

Meu dia parte do traço

A matéria se refaz em cada sopro

Meus sonhos têm a minha voz e passam

por entre minhas mãos

Me reconheço em meio ao deserto

de olhos fechados, iluminando o caos:

a coragem e o sorriso do silêncio recriado.



 




Ouvir(Ara) o tempo
(23/06/2021)


Se fosse uma rede
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀balançando
⠀ nossas memórias
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀nesta sala — Carpe diem
mas são talvez 503 mil mortos aqui

Houvesse o ritmo das tecelãs aqui
⠀timpá os gritos
do passado
⠀ redefinindo a cena de uma dança
⠀⠀⠀⠀⠀⠀de algum dia
perdido

deitar à sombra do Jatobá
milenar pulso do teu casco
engolir o tic tac do achamento luso

Tempos rudes tilintam
procuro inguuán
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀meu encanto
⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀minha terra
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀nosso espaço
nossa cor e remanso
lá onde os sabiás
porventura dormem


 

 

imagem do Pinterest (autor desconhecido)

Fome

 

Parece que vens
como a boca traz
           a vida
como a fome cria
           o sangue
antes que o mundo e
tudo se acabe
 
Parece que sonhas
peixe salta
                   o Capibaribe sem
                   lodo
só cana massapé
                    vida vermelha
 
por dois quilômetros
                                   ~  ~ navegamos ~
       à distância da foz e
       sem histórias da cidade
 
sedimentos
                    sentidos
                                   fonte
nossos dejetos reais
                        icono-pairam
no retro-desenvolvimento
 
                           Hámor-paisagem
um dia boca akiô




 

                                                 imagem do Pinterest (autor desconhecido)

 

Hóspede 


Silên     cio, peço calor
se eu fosse mais ligeira
fato: mãos não estariam
____assim tão secas
 
E este mundo                                       que vai tão ágil
                                  hidratado?
E chega tão rápido à porta da noite
E toca outras vidas,                             mas não tange os mortos?
 
E esse soco frio que te espanta:
que você não fez
que você não chegou lá
que não importa sua voz seu corpo sua mão
que o tempo passa que é pra correr
________________ultrapassar os outros?
 
Mas o dia não chega:
beijos por entre árvores imaginárias
     Yamandú, nosso 
      Pai verdadeiro
Kaiapó, a noite me enlaça
à noite eu nasço
silêncio que tudo ilumina
 
Realizo outra face
        tapuató
minha mão recompõe uma imagem
escreve, inscreve___um convidado
 
minha vista recria minha história
minha mão me toca
         çakú icê
e me reconhece
                             parte da origem
 
icí__________um
caminho in fi ni to ]des-
enformado[